A Virgem Maria atrai mais que a Torre Eiffel
O desafio da devoção mariana para os intelectuais de hoje
Por Pe. Matthieu Boo d’Arc, LC
No dia 12 de setembro, os fãs de Zé Neto tiveram uma surpresa. Finalmente poderiam assistir ao cantor ao vivo, várias semanas após o anúncio de sua doença. Um detalhe, porém, desanimou alguns: o show começava no YouTube às 4h00 da manhã. Show? Nem isso na verdade. Tratava-se de um terço online! Muitos nem se preocuparam em saber o que era, e às 4h já estavam conectados a um canal de YouTube com um nome curioso: “Som do Monte”. Apareceu um homem careca, vestindo uma bata marrom, diante de um belo objeto dourado sobre um altar, que lembrava vagamente algo católico. E então, começaram a repetir, uma e outra vez, uma breve oração a Maria: o Zé Neto fora rezar!
Para um fã comum, não muito religioso, poderia parecer intrigante. Mas para nós que já conhecemos a fé e os ritos de várias religiões, o curioso era num outro lugar: às 5h40, o número de espectadores na live alcançava 600 mil. E isso sem contar os que assistiam pela televisão. Como bom francês, educado na racionalidade de Descartes e Voltaire, fiquei impressionado. Como podia ser que meio milhão de pessoas deixassem de lado duas horas de sono para ir rezar o rosário? Por que não faziam isso durante o dia, antes de dormir, ou a caminho do trabalho? Não seria mais lógico orar diretamente a Deus, talvez em uma missa ou com a leitura da Bíblia?
Curioso, abri o computador e comecei a pesquisar. Os números foram claros: Gaules, o maior streamer de videogames do Brasil, atrai cerca de 9 mil espectadores em uma live comum – cinquenta vezes menos que os do rosário! Fui ver mais longe que o Brasil, e foi ainda mais impressionante. Decidi ir além do Brasil e os dados ficaram ainda mais impressionantes. Em 2023, 40 milhões de pessoas peregrinaram ao santuário de Guadalupe na cidade do México. Em Aparecida, foram 8,8 milhões. Para efeito de comparação, o Coliseu de Roma, ícone da Cidade Eterna, recebeu 12 milhões de visitantes no mesmo ano , enquanto a Torre Eiffel atraiu “apenas” 7,5 milhões! Seria fácil argumentar que os povos latino-americanos têm uma tendência maior à devoção popular. No entanto, isso não explica os 6,8 milhões de peregrinos em Fátima ou os quase 4 milhões em Lourdes, na França — país de filósofos ateus e anticlericais. Seriam todas essas pessoas simples ou manipuladas, atraídas por uma fé pouco racional?
Se você tem uma mente analítica e crítica, a tentação de deixar aqui este artigo é grande. “As pessoas simples precisam de coisas concretas para acreditar”, você pode pensar, um pouco exasperado. E então, voltar à nossa fé mais profunda e estudada, que não depende de santos, devoções ou terços para chegar a Deus. Isso, porém, não seria muito racional. Lembre-se de George Lemaître, astrofísico de fama mundial, professor em Harvard e no MIT; ou de Gregor Mendel, fundador da genética. Pense em Louis Pasteur, entre outros. Ninguém com um pouco de juízo ousaria chamar eles de supersticiosos o “crentes simplórios”. No entanto eram ferventes católicos, do tipo que vá à missa todos os dias. Se ainda estivessem vivos, provavelmente teriam acordado às 4h para rezar o rosário.
O que eles encontraram nestas devoções que nos parecem simples, inúteis, quando não francamente desviadas? Esta pergunta é um pouco desconfortável; também o são os milhões de brasileiros que nestes dias vão rezar na frente de uma pequena estátua preta em Aparecida. Se realmente somos racionais e profundos, por que não nos atrevemos a explorar essa devoção em vez de descartá-la? Será que estamos tão seguros de nossa superioridade que evitamos encarar a profundidade dessa fé?
Padre Matthieu Boo d’Arc, sacerdote da congregação dos Legionários de Cristo, atualmente é o reitor do Centro Vocacional (seminário menor) que fica em Curitiba, PR.
Artigo original: A Gazeta do Povo